Escrevo estas palavras sendo já alguém com a seguinte idade: aquela em já é tarde demais para morrer jovem. E não digo o número de anos – pois que importa? Tenho aquela idade em que já lembro com frequência do relógio sem ponteiros que os olhos miram pensando (com Hilda Hilst e com Bergman): “é mais tarde do que supões.” É chocante o quanto muitas pessoas matam tempo com a leveza de quem se ilude pensando que tem todo o tempo do mundo, quando viver é sinônimo de estar sendo por um tempo escasso, por um intervalo ínfimo. A blink of life in Cosmic time…
A meia-idade é uma fase da vida que pode suscitar ruidosas crises – como aquela que o Faith No More capta tão esplendidamente em uma das melhores canções do magnum opus “Angel Dust” (1992), “Midlife Crisis”. Se transposta com vida, a meia-idade deságua numa velhice cujo fato fundador é este: morrer não é opcional, é obrigatório; não se trata de se, mas de quando. E agora, José?
É aí que Morangos Silvestres se enraíza; a planta desta obra-prima da 7ª arte cresce num solo regado com flores e cadáveres. Morangos brotando em meio a carros capotados. Frutas insistindo em ser suculentas mesmo na proliferação de ruínas. É a Europa do pós 2ª Guerra-Mundi e a sabedoria de Bergman está em nos entregar um protagonista que nos faz sentir profundamente muitos dos dilemas do envelhecimento. Num mundo que ele mesmo parece caduco e absurdo.
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Sinopse | |
O velho professor Isak Borg viaja de carro para uma universidade para receber uma homenagem. No caminho, depara-se com estranhos e parentes, o que faz ele reviver velhos momentos de sua vida e tentar descobrir o significado de estranhos sonhos que vinha tendo. |
É MAIS TARDE DO QUE SUPÕES
por Eduardo Carli para A Casa de Vidro
reprodução dos Manuscritos Exploratórios:
Beirando os 40. Talvez metade da vida vivida, metade por viver? Não dá pra saber se chego aos 80 ou morro atropelado amanhã. Gi, com 46, sente mais o peso do envelhecimento de si e (re) dos pais. Ontem (re)assistimos o clássico de Bergman, “Morangos Silvestres (1957), que tem como protagonista um velho doutor sueco, Isak Borg, a caminho de uma cerimônia honorária. Sentindo-se meio maladroit, meio idiota honorário, este espécimen do homo academicus, devotado à ciência, confronta a finitude da carne. A verdade inescapável de que tudo quanto é gente e bicho vai embora.
A linguagem onírica de certas cenas nos imerge na atmosfera afetiva do idoso diante da morte: o relógio sem ponteiros é talvez a grande imagem icônica do filme. Mas também o que na sequência, os quadros em que vejos, no mundo de sonho de Isak, num cinema que prenuncia Charlie Kaukman, uma carruagem fúnebre com um caixão. Um acidente de rua com a carruagem faz com que o caixão despence ao asfalto e se abra: e ali nosso protagonista verá o espelho de seu ser vivo, o duplo de sua existência, seu cadáver morto, seu devir matéria morta. O onírico de nosso idoso médico expressa sua apreensão diante do momento fatal. O corpo dá seus sinais, e o sonho duplica estes sinais, transformados pela poiesis do inconsciente, poeta libertado por um tempo noturno da tirania controladora da aliança ego-superego.
Outro sonho angustiante é aquele onde o combalido Isak chega a uma sala de aula, um anfiteatro acadêmico, e vai ser avaliado: no microscópio, ele não enxerga nada, e o problema não é com as lentes do aparelho, com seus olhos que a terra há de comer. Na frase, há uma frase, mas Isak a trata como se estivesse escrita em idioma desconhecido; não decifra mais o significado. Esta corrosão biopsíquica que vemos espraiada na tela pode muito bem ser considerada como alta poesia visual que Bergman ergue, para o serviço da posteridade, sobre o mundo inírico da Alzheimer, sobre como sonhamos enquanto o esquecimento nos devora – tema que o sucessor Kaufman explorará com brilhantismo, como fez no magnum opus “Brilho Eterno De Uma Mente Sem Lembranças”, dirigido por Gondry).
É um belo, pungente filme sobre estar-velho. Seu final é mais singelo do que trágico. Bergman, aqui, é bem menos pessimista que Haneke, alhures e muitas décadas depois com seu Amor. Honrado dorme imerso em velhos souvenirs de infância nosso herói, Doutor Isak. O cérebro idoso talvez seja obrigado a encarar um processo, que não se escolhe e que somos coagidos a encarar existencialmente – de corrosão da memória e das capacidades cognitivas, o que pode conduzir a uma “infantilizaação-se”, numa espécie de Ouroboros da vida. Me refiro à noção bem curiosa, cíclica, da vida como jornada da infância à infância, com dois túmulos no meio.
Hoje a Técnica se esforça para encontrar um espécie de cura para senescência. Vi recente documentário, The Future of Work and Death, que mostra estes projetos de tecnofix pra velhice. Prolongar nossa vida até mais de 100 anos com genética avançada, farmacêutica fora-da-caixinha e repleta de tarjas pretas, nanorobôs entrando por nossas veias, ampla e irrestrita ciborguização, estas doideras. Mas há uma cura, de fato encontrável, efetivável, para a Alzheimer? Ou apenas adiamentos?
Numa linha do tempo suficientemente alongada, mesmo que vivêssemos até 120 anos de idade, não estaríamos sempre condenados a ter Alzheimer, ainda que não tão cedo quanto nossos contemporâneos? Promete-se um futuro de Alzheimers de entrada lenta… e de upload de nossos cérebros para data centers. Pode até ser que Deus não exista, mas as megacorporações do Vale do Silício, providenciais, vão permitir que alguns comprem sua imortalidade. Imortalidade versão cyber. A pira dos transhumanistas e o investimento das Big Tech: vejam sintomas disso na série da Amazon Upload ou nos docs transhumanistas.
Morangos Silvestres nos reconecta com uma velhice old school. Bergman é o dramaturgo da finitude, não o marketeiro dos tecnofixes. Filme de teor existencialista e arroubos surreais, Morangos também revela, expõe um caráter: a do professor, doutor, erudito, que viveu auto-reprimido, de afetos frios/contidos, com a justificativa de estar devotando sua vida à ciência. Um caráter ascético que vem inundado também das angústias vinculadas a um passado mal vivido, pois não experenciado a contento.
A adesão demasiado estrita ao logocentrismo, e a uma ética científica de matriz ascética, que visa criar uma fenda intransponível entre razão e emoção, pode ressecar todo o complexo corpo-psiquê. O Professor Isak está desvitalizado, e não é apenas a fatalidade de sua condição presente, mas o resultado da jornada de seu ethos vida afora.
Este filme comove, claro, pelo universal da condição do protagonista: retrato do que nos espera, caso fiquemos vivos o tempo suficiente para maturar e adentrar a última idade. O personagem é simpático, ou melhor, conseguimos sentir empatia por ele, pois talvez não sejamos poucos os que chegamos aos finalmentes – eu digo, às beiras de morrer – com muitos arrependimentos pelo ñ-vivido, pelo mal-vivido. Este remorso do não-feito deve ser distinguido do arrependimento pelo mal-feito (o primeiro, é remorder o que não se fez; o segundo, sentir culpa por actual deeds). Segundo Gi Toassa, Morangos Silvestres também guarda em seu âmago um “relicário de experiências decisivas” vividas e revividas por Isak nos dias que lhe restam.
Eu lembrei de Caio F. Abreu falando de “MORANGOS MOFADOS”: se você não come logo os morangos colhidos, eles mofam, estragam, apodrecem. Lição tão básica que nos dá a natureza, e lição tão fecunda para todos que a aprendem. Não se trata só de hedonismo raso, mas de um senso profundo de kairos. Há o tempo oportuno para o usufruto dos frutos. Nem imaturos, nem dépassés. Há algo dessa doutrina num livro que adoro de A. Gide, “LES NOURRITURES TERRESTRES”:
“Um pensamento da morte que não foi constante o bastante não deu suficiente valor ao menor instante de tua vida! E não compreendes que cada instante não teria esse brilho admirável senão destacado por assim dizer sobre o fundo muito obscuro da morte?” OS FRUTOS DA TERRA, de André Gide (ed. RioGráfica, trad. Ivo Barroso)
Penso que Bergman fica mais compreensível, apesar da dificuldade em decifrá-lo plenamente, se o colocarmos neste contexto de “urgência” existencial diante do móvel cosmos. Estes morangos “selvagens” que ela – encarnada por Bibi Andersson – colhe nos campos são frutos pré-agrotóxicos, pré-pesticidas, colhidos pela loura de maneira a simbolizar uma relação mais visceral com o elemento telúrico, com terra, planta, semente, plantio, colheita. Isto, para Isak, parece ter se perdido, ou seja, ficou no campo do não-vivido. Além disto, ela manifesta algo de uma doçura feminina que nele amargou – pois os strawberries são colhidos com intento de serem presenteados no aniversário pro tio semi-surdo.
Talvez – ensaio aqui pensamento longe do chão seguro das certezas, voando de balão pelos céus borrascosos da especulação – estejamos diante de duas atitudes existenciais diante dos morangos, e que Bergman constrói na oposição entre velho/moça, Isak/Sara, velho/novo, envelhecedor/rejuvenescente. Acaba que o velho Isak aparece-nos, detrás do volante de seu carro, como um homem infeliz pelo não-vivido, pelos amores não concretizados, pelas frustrações acumulantes junto com o pó sobre os porta-retratos.
Ele mira o passado – que muito em breve não terá nem mesmo o direito de rememorar (cadáveres não se lembram de nada) – sabe que escolheu, não pode des-escolher, virou destino. Quis uma vivência de homo academicus que se isola – withdraws from the world – e não vive plenamente as relações humanas. Pois trancou-se entre livros e escritos, intramuros. Benfeitor do gênero humano desde seu pequeno escritório isolado de quase todo mundo…
Para além das reflexões soturno-sarcásticas que pode suscitar, este filmaço é também um road movie existencialista / surrealista dos mais deliciosos de assistir. Revela encontros na estrada traumáticos. Como quando a caravana de Isak quase dá um crash no Fusca de um casal tretado que vinham aos tapas e fizeram o Fusca capotar. Além disso, tensa relação entre o Isak e sua nora deixam o filme-estrada denso em confrontação intersubjetiva. É um filme que mostra a viagem do velho douto, do idoso erudito, rumo a uma cerimônia de consagração, mas entre o ponto de partida e o ponto de chegada há mais do que traslado no espaço: o filme nos entrega a consciência de Isak enquanto viaja o que talvez seja sua última viagem, uma consciência que se entrega à nostalgia e ao sonho, num lusco-fusco da mente que o cineasta captou com talento ímpar.
Vencedor do Urso de Ouro em Berlim, este filme é um testemunho da genialidade do jovem Bergman, que o realizou em 1957 e que desde então vem suscitando toda uma fortuna crítica – nesta, eu assinalo uma possibilidade bem fecunda de leitura, que é a Proustiana. Morangos seria um filme sobre o tempo redescoberto, sobre o passado reimaginado, com os morangos silvestres trabalhando um pouco as madeleines da Recherche:
“O narrador do livro No Caminho de Swann, de Marcel Proust, é subitamente sugado para um redemoinho de lembranças ao experimentar um pedaço de bolo com chá. A partir daí, ele encara uma famosa viagem no tempo neste que é o primeiro volume do longo romance do célebre autor francês. Algo muito parecido faz com que o velho Dr. Isak Borg (Victor Sjöström) retome suas reminiscências mais ternas, quando em meio a uma viagem saboreia pedaços de morangos silvestres. Se é costume enxergarmos influências literárias de August Strindberg no cinema de Ingmar Bergman, em Morangos Silvestres (Smultronstället, 1957) é a vez de o cineasta mostrar seu lado proustiano em um dos seus dramas de caráter mais intimista, porém também um de seus filmes de mais fácil conexão com o público.” (Heitor Romero, 2013, Cineplayers)
Um filme de rara beleza e denso significado que nos convida a pensar na vida diante dos morangos: comê-los a contento e no tempo oportuno, ou deixá-los mofarem e apodrecerem enquanto nós mesmos apodrecemos na espera, passa a ser o dilema existencial central. Para Isak, está ficando tarde, o tempo vai ficando escasso. Mas será só pra ele? Ou sempre está ficando tarde pra todo mundo? O tempo de todos nós, não será ele escasso?
A ampulheta da existência não será mais veloz do que nos iludimos a pensar, em nossos sonhos de perenidade, de imortalidade, com que as vezes na fé nos embriagamos? Por isso, quem entendeu um pouco deste filme passa a ter atitude outra, estranha, diante do viver. Não importa que nos perguntem “que horas são?”, nós retrucamos sem números, enigmáticos, com jeitão de sibila ou de esfinge, ecoando Hilda Hilst e seu relógio de ponteiros quebrados: “é mais tarde do que supões.” E estamos ficando sem tempo em muitos mais sentidos do que supões.
Assim como os morangos não podem ser possuídos – quem quer guardá-los acabará por tê-los mofados e apodrecidos – talvez a vida seja isto mesmo: morango impossuível. A nós, viventes, só é dado o usufruto e nunca a posse do morango agridoce do viver.
Eduardo Carli de Moraes
REFERÊNCIAS – LINKS CONSULTADOS
https://lfravoline.medium.com/o-tempo-a-palavra-e-os-ossos-596601ed5ed7
https://www.cineplayers.com/criticas/morangos-silvestres
https://www.brasildefato.com.br/2024/02/04/hilda-hilst-20-anos-da-morte-de-uma-das-escritoras-mais-importantes-do-seculo-xx
https://makingoff.org/forum/index.php?showtopic=62258&hl=%2Bthe+%2Bfuture+%2Bwork+%2Band+%2Bdeath
https://makingoff.org/forum/index.php?showtopic=57912&hl=%2Bmorangos+%2Bsilvestres
Publicado em: 05/08/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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